

As disputas envolvendo contratos de compra e venda de ações e quotas de sociedades são dos mais complexos temas do direito comercial contemporâneo. Estes contratos não só são tipicamente complexos, como também têm nas regras do direito estrangeiro (particularmente, as Leis de Nova York – o principal hub do comércio internacional) sua fonte inspiradora – o que torna desafiadora a sua interpretação, especialmente dentro dos distintos parâmetros impostos pela legislação brasileira.
Muitas das vezes, disputas envolvendo esses contratos são submetidas à arbitragem – método bastante adequado para resolver disputas de tamanha heterogeneidade, dada a possibilidade de escolha, pelas partes, de julgadores versados nos intrincados temas que as assolam. Todavia, disputas dessa natureza invariavelmente vão parar no Poder Judiciário, e os precedentes decorrentes permitem-nos lançar olhos sobre o entendimento dos tribunais brasileiros acerca desses contratos.
Um recente e interessante precedente da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) lança particular luz sobre um tema muito relevante para a interpretação dos contratos de compra e venda de ações: o escopo e extensão do dever de informar contingências que venham a afetar a operação, bem como as consequências de sua violação.
O caso concreto envolve disputa advinda de um contrato de compra e venda de quotas representativas de 26,05% do capital social de uma sociedade limitada. Após a celebração da avença, os compradores tomaram conhecimento da existência de nova dívida da sociedade, oriunda de ação trabalhista não divulgada pelo vendedor antes de fechado o contrato.
Por conta desse fato, os compradores foram obrigados a realizar robusto aporte de capital na empresa para sanar a dívida e buscaram, junto ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, indenização calculada com base na depreciação das quotas adquiridas. Segundo afirmam os autores, as quotas adquiridas perderam valor diante da ausência de divulgação de relevante dívida. Isso porque, segundo asseveram, todas as dívidas teriam sido consideradas na formação do preço. Portanto, se o réu tivesse informado sobre a existência daquela ação trabalhista, da qual tinha ciência inequívoca, certamente o preço pago seria menor.
Na visão do réu, o pleito seria absolutamente improcedente no mérito, pois a dívida ainda não existiria à época da realização do negócio – afinal, a ação trabalhista ainda não teria transitado em julgado quando do fechamento da operação. Afirma, ainda, que a ação em si era fato público e notório, vez que tramita em processo público. O réu afirma, inclusive, que um dos autores já era sócio quotista da sociedade antes da celebração do contrato, e que, por isso, tinha plena ciência da ação. Com base nesses fatos, argumenta o réu que os autores deveriam considerado essa dívida na formação do preço, dentro de seu dever de diligência.
Em primeira instância, o TJSP julgou parcialmente procedente a demanda. Em sede de apelação, o TJSP manteve incólume a sentença.
Em acórdão de lavra do Des. Grava Brazil, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP entendeu que o MM. Juízo de primeira instância entendeu corretamente pela ocorrência de culpa concorrente. Na visão do Tribunal, o réu violou seu dever de informar fato relevante para a prestação obrigação, um dos corolários da boa-fé objetiva, como estipulada no art. 422 do Código Civil, enquanto que os autores também violaram seu dever de diligência – que segundo o tribunal, é “inerente aos negócios jurídicos” – ao deixarem de considerar a dívida trabalhista na formação do preço da avença.
Na mesma linha, o TJSP também entendeu correta a estipulação da indenização pelo MM. Juízo a quo. A sentença havia determinado a base de cálculo da indenização não pela depreciação das quotas (como pedido pelos autores), mas sim pelo dano material direto sofrido pelos compradores. Na visão do juízo, o dano direto sofrido seria o valor do aporte de capital feito pelos novos quotistas (na proporção de 26,05% da dívida trabalhista oriunda da ação não-divulgada), e não a perda de valor das quotas, como queriam os autores. Considerando a culpa concorrente, o TJSP acabou por condenar o réu ao pagamento de 50% desse montante.
Pode-se extrair desse precedente três lições importantes sobre a visão do Poder Judiciário sobre o dever de informar contingências que venham a afetar o contrato de compra e venda de ações e quotas:
- O vendedor possui o dever de informar qualquer potencial contingência que possa vir a afetar a avença. Esse entendimento está alinhado com os ditames princípio da boa-fé objetiva, gravado no artigo 422 do Código Civil, e segue a linha da maioria dos precedentes recentes dos tribunais brasileiros, que imputam ao vendedor o dever de informar.
- O comprador também possui dever de diligência. Na visão do Tribunal, é razoável esperar que os adquirentes buscassem conhecer os riscos do negócio celebrado, principalmente em se tratando de contratos empresariais, onde as partes são experientes em negócios desse tipo, e são invariavelmente bem assessoradas juridicamente. Note-se, ainda, que o contrato não aparenta incluir nenhuma cláusula de limitação do dever de diligência do comprador, geralmente apelidadas de “sandbagging clauses”, e nem qualquer representation ou warranty dada pelos compradores de que conheciam a ação e que o débito dela decorrente teria sido considerado na formação do preço – e mesmo assim o TJSP entendeu que estes teriam violado seu dever de diligência;
- Indenização pelo dano imediato, não pela perda de valor das ações ou quotas. Em caso de violação do dever de informar, a indenização resultante será calculada não pela depreciação das ações ou quotas causada pelo fato não-divulgado, mas sim pelo efetivo dano imediato. Esse ponto é extremamente controverso na doutrina e na jurisprudência, de modo que o entendimento do TJSP lavrado nesse precedente certamente servirá de base para casos futuros perante este Tribunal.