

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é, segundo a descrição de seu próprio website, “a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil. É de sua responsabilidade a solução definitiva dos casos civis e criminais que não envolvam matéria constitucional nem a justiça especializada”.
Em 2021 apenas, segundo estatísticas oficiais, o STJ proferiu 560.405 decisões. Desse total, 107.856 se deram em sessão (i.e., colegiadamente) e 452.549, monocraticamente (Fonte: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Contato-e-ajuda/Fale-conosco/Ouvidoria/Estatisticas.aspx>. Acesso em 25.07.2022). Considerando-se que o STJ possui 33 Ministros, é humanamente impossível que eles analisem e julguem, detidamente, todos os processos originários e os recursos submetidos ao seu conhecimento.
Com o objetivo de reduzir o número de processos que chegam ao STJ, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 125, publicada no Diário Oficial da União em 15.07.2022 (EC125), que instituiu o requisito da relevância da questão de direito federal para a admissibilidade do recurso especial.
Indicam-se, a seguir, algumas impressões sobre o regime dela advindo. Trata-se de percepções eminentemente práticas, fruto da atividade cotidiana da advocacia contenciosa, sem a pretensão de a elas conferir rigor acadêmico.
i – o regime da relevância da questão federal
O art. 1º da EC125 acrescentou o §2º ao art. 105 da CF88, com a seguinte redação:
“§2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.”
À luz do novo regime, o recurso especial deverá conter capítulo preliminar com a demonstração da presença da relevância da questão federal nele aventada, como requisito de admissibilidade.
ii – o regime advindo da EC125 já entrou em vigor?
O art. 2º da EC125 estabelece que a “relevância”, por ela instituída, “será exigida nos recursos especiais interpostos após a sua entrada em vigor”. O art. 3º, por sua vez, fixa a sua entrada em vigor “na data da sua publicação” (15.07.2022). Uma leitura apressada da EC125, portanto, apontaria para a sua imediata validade, a exigir dos advogados, a partir de então, a interposição de recurso especial com a demonstração, em capítulo preliminar, da presença do requisito da relevância da questão federal nele discutida.
Ocorre que o art. 1º, ao instituir o regime de que trata a EC125, dispõe que a demonstração da relevância da questão federal deverá ser demonstrada “nos termos da lei”, a indicar que se trata de norma de eficácia contida, e que o Congresso Federal, portanto, oportunamente, estabelecerá normativa específica sobre o tema. Foi o que se deu, aliás, com relação ao requisito da repercussão geral no âmbito dos recursos extraordinários ao Supremo Tribunal Federal (STF), estabelecido pela Emenda Constitucional 45/2004, posteriormente regulamentado pela Lei n° 11.418/2006 – que, por sua vez, realizou as necessárias alterações no Código de Processo Civil então vigente (CPC-1973).
A prática, contudo, recomenda prudência.
Como sabido, os Tribunais Superiores, dentre eles o STJ, praticam a chamada jurisprudência defensiva, que não raro cria “surpresas” às partes e advogados, resultantes na inadmissão ou mesmo no desprovimento de seus recursos, inclusive diante de quadro normativo indefinido – tal como se dá, no caso específico, com o regime advindo da EC125.
Assim, até que o Congresso Nacional aprove lei que regulamente o regime da relevância da questão federal, definindo os seus contornos e respectivos procedimentos, recomenda-se que os advogados façam constar, dos recursos especiais por eles elaborados, capítulo preliminar com a demonstração da presença do requisito ora em comento, conforme a seguir discutido.
iii – demonstração de relevância da questão federal
Até que o novo regime seja devidamente regulamentado, uma referência legislativa potencialmente segura, a orientar as partes e advogados na elaboração de suas preliminares de relevância da questão federal, consiste no art. 1.035, §1º, do CPC-2015, que disciplina a repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário ao STF. Segundo essa norma, “[p]ara efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”.
A ratio subjacente ao regime advindo da EC125 parece ser a mesma que orientou a criação do requisito da repercussão geral nos recursos extraordinários ao STF. Se assim for, os recursos submetidos aos Tribunais Superiores devem abarcar interesses que ultrapassem aqueles das partes neles envolvidas. É preciso, seja com a repercussão geral, seja com a relevância da questão federal, que a manifestação dos Tribunais Superiores tenha por objetivo, além da solução dos casos concretos a eles submetidos, a interpretação definitiva de uma dada questão jurídica, constitucional e de direito federal, a também servir de orientação a todos os Tribunais do país.
A essência da relevância da questão federal, portanto, reside na constatação de que a decisão do STJ terá o condão não apenas de decidir a lide concreta, mas, principalmente, por meio dessa decisão, de também orientar os Tribunais de segunda instância, em todo o país, ao enfrentarem demandas que enfrentem a mesma matéria de direito federal.
iv – a apreciação do requisito da relevância pelo STJ
O novo §2º do art. 105 da CF1988, após enunciar a relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do recurso especial, dispõe que ela será examinada pelo STJ, “o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”.
Imagina-se que o STJ, provavelmente, criará sistema de averiguação do requisito da relevância da questão federal via plenário virtual, nos moldes da prática do STF de decidir acerca da presença do requisito da repercussão geral.
v – hipóteses presumidas de relevância da questão federal
O constituinte derivado estabeleceu algumas hipóteses presumidas de ocorrência de relevância da questão federal. Assim, não haverá a necessidade de sua demonstração em recurso especial interposto contra acórdãos de Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça Estaduais e Tribunal do Distrito Federal e Territórios que tenham decidido (conforme o novo §3º do art. 105 da CF1988): “(…) I – ações penais; II – ações de improbidade administrativa; III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos; IV – ações que possam gerar inelegibilidade; V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ; VI – outras hipóteses previstas em lei”.
v.1 – relevância presumida ratione materiae
Reputa-se relevante a questão federal por critério ratione materiae, aventada em recursos especiais interpostos em sede de (a) ação penal, (b) ação de improbidade administrativa e (c) ação que possa gerar inelegibilidade. Segundo a EC125, em disputas envolvendo essas matérias, presume-se a existência de interesses que ultrapassam os limites subjetivos do processo, restante preenchido, consequentemente, o requisito da relevância da questão federal.
Chama a atenção a ausência, do rol das matérias cuja relevância da questão federal é presumida, das demandas envolvendo direitos difusos, coletivos e transindividuais.
v.2 – relevância presumida por violação à jurisprudência dominante do STJ
A questão federal subjacente também será reputada relevante, independentemente de demonstração, nos casos em que o recurso especial atacar acórdão que tenha contrariado jurisprudência dominante do STJ. Aqui, o legislador não foi claro quanto ao conteúdo do termo “jurisprudência dominante do STJ”. Até que haja regulamentação legal ou jurisprudencial sobre a questão, uma referência legislativa potencialmente relevante consiste na sistemática de recursos repetitivos prevista nos arts. 1.036 e seguintes do CPC-2015.
Em qualquer cenário, o próprio STJ geraria maior segurança jurídica – seja para o regime da relevância da questão federal, seja para o próprio sistema recursal como um todo – se se pronunciasse sobre o que ele mesmo reputa como a sua “jurisprudência dominante”.
v.3 – hipóteses adicionais de relevância da questão federal “previstas em lei”
O inciso VI aparenta consistir em norma de conteúdo aberto, segundo a qual a definição da relevância da questão federal poderá ocorrer via “outras hipóteses previstas em lei”. O dispositivo parece permitir que legislação infraconstitucional amplie o rol do §3º do art. 105 da CF1988. Essa conclusão, contudo, não é necessária.
Com efeito, o rol do §3º do art. 105 da CF1988 foi criado por Emenda Constitucional, cujo efeito consistiu em criar rígido requisito de admissibilidade, via recurso especial, ao STJ. Não parece defluir, da sistemática contida na EC125, uma delegação, ao legislador ordinário, para aumentar esse rol ao seu bel prazer – sem a observância do rigoroso quórum de aprovação das emendas constitucionais.
E mais: consta que, durante a tramitação legislativa da EC125 na Câmara dos Deputados, tentou-se alterar o seu texto para nele prever que a alteração do rol do §3º do art. 105 da CF1988 poderia se dar por lei ordinária, tendo sido expressamente rejeitada.[1]
A questão, portanto, precisará ser esclarecida pela jurisprudência.
v.4 – relevância de questão federal em razão do valor da causa
Finalmente, também se reputa relevante a questão federal por critério puramente econômico, em que o valor da causa, nos autos em que interposto o recurso especial, ultrapasse 500 salários-mínimos. Esse critério se mostra questionável.
Não nos parece que a relevância da questão federal possa decorrer de um critério puramente econômico. É preciso, como visto acima, que ela seja acompanhada de algum outro critério diferenciador, que ultrapasse os interesses subjetivos envolvidos em um dado recurso, sob pena de se criar um critério de aparente favorecimento a pessoas, físicas e jurídicas, envolvidas em disputas de maior expressão econômica – criando-se, na verdade, um critério de natureza censitária.
Caberá à jurisprudência, contudo, melhor esclarecer os contornos efetivos da presunção aqui tratada.
vi – ajuste do valor da causa no ato da interposição do recurso especial
A segunda parte do art. 2º da EC125 contém interessante previsão. No ato da interposição do recurso especial, a parte “poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo”.
É dizer: mesmo que, em primeira e segunda instâncias, o valor atribuído a dada causa seja não superior a 500 salários-mínimos – hipótese presumida de relevância da questão federal discutida, na forma do novo §3º, III, do art. 105 da CF1988 –, a parte poderá atualizá-lo no ato de interposição do recurso especial. Ao assim agir, a parte se livrará do ônus de demonstrar, em seu recurso, a presença do requisito da relevância da questão federal subjacente.
Algumas dúvidas práticas surgem com relação à defesa da contraparte para se insurgir, por exemplo, contra o uso abusivo dessa prerrogativa, diante de evidente cenário em que a expressão da controvérsia não atinja o valor fixado pelo inciso III do §3º do art. 105 da CF1988. Nesse caso, deverá a contraparte impugnar a alteração do valor da causa por meio de sua resposta ao recurso especial? Apresentada a impugnação, a sua apreciação será feita em sede de juízo de admissibilidade, primeiramente realizada pelos Tribunais de origem, ou somente pelo próprio STJ, se o recurso até lá chegar?
Se a questão não vier a ser regida pela futura lei de regulamentação do regime advindo da EC125, a jurisprudência, certamente, dela se ocupará no momento oportuno.
vii – uma última consideração
O acesso ao STJ, via recurso especial, sempre representou exercício processual complexo e cercado de incertezas. Seja pela dificuldade de superar o rigoroso filtro estabelecido, em juízo de admissibilidade, pelos Tribunais de segunda instância, seja, também, em razão das elevadas exigências jurisprudenciais criadas pelo próprio STJ, a via do recurso especial sempre se mostrou “excepcional”. Mesmo diante de tantas barreiras processuais, tem sido crescente o número de recursos que, ano após ano, chegam ao STJ.
Dessa constatação derivam possíveis conclusões, com destaque para as seguintes: ou bem o novo regime da relevância da questão federal apenas criará mais uma barreira de acesso ao STJ, que continuará, ainda assim, a dar causa a recursos em massa em razão das inadmissões na origem, ou a futura lei regulamentadora criará mecanismos processuais que, conquanto não previstos na EC125 de forma expressa, fecharão, na prática, as portas do STJ para a grande massa recursal que chega até ele. Qualquer que seja a resposta, a coletividade dos jurisdicionados não sairá beneficiada. Haverá, necessariamente, menos “clientes” atendidos pelo STJ.
Se o regime da relevância da questão federal representará, na prática, a oportunidade para que o STJ consiga melhor exercer a sua missão constitucional, assim exercendo a jurisdição de forma mais eficiente e técnica, o tempo dirá.
Em qualquer cenário, entretanto, parece-nos reforçada a percepção, por muitos já verbalizada, de que o país necessita de uma ampla e profunda rediscussão sobre o seu modelo de acesso à justiça.
[1] <https://www.conjur.com.br/2022-jul-18/nunes-lisboa-emenda-constitucional-12522>. Acesso em 28.07.2022.